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Biblioteca Virtual Cordel
ou como transformar um acervo em corpus
Fenômeno com origens europeias que remontam aos trovadores sem deixar de ser intrinsecamente brasileiro, expressão combinando de forma singular a dimensão popular e erudita das culturas, testemunho de uma outra época e de um outro Brasil sem nunca deixar de ser relevante ao Brasil atual, a literatura de cordel é hoje reconhecida mundialmente como um importante patrimônio cultural.
Expressão única da memória popular, que já passou para o formato digital nas produções do século XXI, o cordel constitui um objeto de estudo riquíssimo permitindo analisar a forma como uma arte se mantém viva através de uma aprendizagem constante e uma assimilação do novo, sem perder o que a caracteriza.
Seu estudo e sua preservação são do mais alto interesse para os estudos literários, linguísticos, antropológicos, históricos e das ciências humanas em geral. Nada mais justo, então, do que proporcionar as condições para que a literatura de cordel possa continuar a ser estudada com rigor pelos pesquisadores do século XXI.
A Universidade de Poitiers, fazendo face aos desafios que se colocam nos dias atuais à preservação e à extroversão de acervos públicos, os quais colocam a indexação e a disponibilização on-line como horizontes incontornáveis, elaborou nos últimos anos um projeto intitulado “Corpus Cordel/Cantel”, destinado a traduzir virtualmente o acervo Raymond Cantel, enriquecido com as doações da escritora Nélida Piñon e da professora e poeta Francisca Pereira dos Santos, na perspectiva de se articular com iniciativas do mesmo teor em outras instituições.
Neste trabalho de “tradução virtual”, que deu à luz o portal “Biblioteca Virtual Cordel”, os folhetos foram digitalizados de forma sistemática, assim como foi construída uma estrutura de catalogação que permitirá identificar e localizar os folhetos de cordel por título, autor, temática, forma, lugar ou ano de edição etc. Conforme a situação dos direitos autorais o autorizar, os folhetos serão acessíveis ao público, em formato pdf (imagem e texto).
O objetivo do projeto, ferramenta para estudos futuros, consiste em, a partir dessas coleções particulares constituídas em acervos, construir um CORPUS. Aqui interessa-nos principalmente a definição hodierna que tem o termo na ciência linguística. O especialista britânico John Sinclair, por exemplo, define um corpus como “uma coleção de textos escritos, em formato eletrônico, selecionada segundo critérios externos para representar, tanto quanto possível, uma língua ou uma variedade linguística enquanto fonte para pesquisa linguística.” A definição dada também menciona o fato de que um corpus deve ser representativo de sua variedade. Desta forma, é necessário e essencial que o corpus não represente apenas o estilo e a linguagem de um ou outro indivíduo, mas de todo o grupo.
No caso do Corpus Cordel/Cantel, a representatividade é assegurada pela imensa quantidade e diversidade de autores que compõem o acervo. Além do número de autores, as diferentes variedades de tema, estilo, métrica e rima estão presentes nos diversos folhetos que constituem a base do corpus, o que assegura que o Corpus Cordel/Cantel possa se tornar uma referência padrão do universo da literatura de cordel como um todo.
A primeira etapa da constituição do corpus foi a digitalização dos milhares de folhetos do acervo Raymond Cantel, que a médio prazo poderão ser todos consultados neste portal. Em uma segunda etapa, o corpus será etiquetado morfossintaticamente, o que significa que cada palavra de cada um dos folhetos de cordel receberá uma etiqueta classificatória que informa a função da palavra na frase (verbo, substantivo, adjetivo, etc.).
Esta etiquetagem permitirá que as pesquisas sejam muito mais completas. Um pesquisador poderá, por exemplo, em apenas alguns segundos, obter informações precisas como, por exemplo, “qual o verbo mais utilizado pelo autor Leandro Gomes de Barros?”, ou então, “quais os adjetivos associados a Lampião em todos os folhetos em que ele aparece?”.
No futuro, outros acervos, de outras universidades ou institutos (já tecemos parcerias abertas com o IEB-USP, a Universidade Regional do Cariri…), poderão vir a ser parceiros de catalogação, permitindo investigações e localizações fáceis do folhetos pelo mundo inteiro, e os textos dos folhetos integrarem o Corpus Cordel/Cantel, o que o tornará cada vez mais completo e fonte de informações cada vez mais rica sobre esta forma de literatura popular brasileira. Assim, a base de dados da Biblioteca Virtual Cordel quer-se um polo de referência no mundo muito disperso do cordel, numa perspectiva não de centralização, mas de federação das informações disponíveis.
A elaboração deste portal foi também acompanhada por uma reflexão constante sobre a tendência atual dos estudos sobre cordel, que é de passar de uma perspectiva patrimonial tradicional para um tratamento bibliográfico que reconhece o folheto como um livro – tal como o desejam os cordelistas. Também foi a nossa escolha, como dão conta os vários itens de descrição dos folhetos, fruto de um demorado trabalho de indexação sistemática levado a cabo com os nossos parceiros do IEB-USP, da UFC-Cariri e da plataforma informática da Universidade de Poitiers (I-Médias).
Essa indexação e a adoção de critérios mínimos visa facilitar a partilha de catálogos com os nossos parceiros, presentes e futuros.
A realização desta base textual e linguística digitalizada permitirá identificar mecanismos relativos às particularidades dos usos linguísticos na literatura de cordel, e explorar o fenômeno do cordel em suas múltiplas dimensões (literária, semiótica, lexicográfica, editorial, arquivística, histórica, antropológica etc.). Examinar-se-ão os efeitos de singularidade e os processos de transformação e deslocamento desse objeto tornado mais complexo: na sua relação entre escrita e oralidade, entre História e estória, nas circulações e mutações de modelos formais e temáticos.
A Biblioteca Virtual Cordel pretende assim desenvolver o caminho inaugurado por Raymond Cantel, adaptando o acervo à era digital e às suas exigências. Suscetível de ser sempre enriquecida, concebe-se como uma ferramenta em constante evolução, à imagem do patrimônio que procura valorizar.